domingo, 1 de maio de 2011

Jornalista Bárbara Souza:"À medida que conversávamos, foi possível notar que ele narrava fatos gravíssimos"

O futuro do país admira o ‘dono da boca’



De tanto nos depararmos com notícias sobre a precariedade do ensino público e aumento da criminalidade, em certos momentos essas mazelas não nos impactam tanto. Mas quando a gente se depara com a face humana dessa realidade, não há como ficar indiferente. Foi o que aconteceu comigo recentemente. Fui almoçar na casa de uma pessoa da família e lá chegando encontrei um garoto, filho da cozinheira. Como gosto de estar atualizada sobre o olhar da juventude para o mundo, logo tratei de puxar conversa com o menino.

Meu primeiro susto: apesar do corpo franzino que me autorizaria a atribuir a ele talvez uns 10, 11 anos de idade, o ‘garoto’ tinha, ou melhor, tem, 14 anos. Notei que ele trajava uniforme escolar e, como eram apenas 11h40, perguntei se ainda iria para o colégio. Não, ele estuda pela manhã. Não teve aula? – indaguei. O adolescente, a quem darei o nome fictício de João, me disse que só teve duas. Com uma indisfarçável dificuldade para completar uma frase sem derrapar na concordância nominal ou verbal, João me contou que “nós nunca tem (sic) todas as aula (sic)”.

À medida que conversávamos, foi possível notar que ele narrava fatos gravíssimos – como o episódio em que um colega “tentou matar o vigia da escola” com um facão – com a mesma naturalidade com que me contou ser torcedor do Bahia. 

Ele caminha cerca de 2 km de casa até a escola e outro dia, me contou, teve que fazer parte do percurso correndo. Motivo: alguns moradores da Polêmica tentaram lhe roubar o ‘sapatênis’ que João ganhara da mãe havia poucos dias.  Repetente da quinta série do ensino fundamental, João é aluno de uma escola municipal e reside num bairro pobre, próximo à BR-324.

Confesso que o que mais me aturdiu foi ouvir o depoimento de João sobre a rotina do bairro onde mora. Com a naturalidade de quem boceja, o garoto começou assim a frase: “O cara que comanda lá...”. A despeito de já ter entendido do que se tratava,  interrompi a fala dele para me certificar: “O cara que comanda o quê?”. Não deu outra: “o cara que comanda a ‘boca’, tia”, explicou com aquele tom impaciente de quem está respondendo uma pergunta cuja resposta é óbvia.

Com brilho nos olhos, João desatou a contar que a polícia ficou “cinco anos” tentando capturar o tal dono da ‘boca’. Explicou, espontaneamente, que o traficante sempre conseguia fugir, correndo sobre os telhados das casas. Até que um dia uma telha quebrou e o sujeito caiu. “Aí denunciaram ele!” – disse o rapazote, fazendo com a mão o gesto de quem fala ao telefone e deixando escapar um certo ar de contrariedade.

Claro, perguntei se ele não gostou da prisão do ‘dono da boca’. Tive outra surpresa ao ouvir que “os pessoal (sic) lá gosta dele”. João me explicou que quando tem alguém doente, “ele dá remédio” e se algum morador passa por dificuldade financeira, não falta boa vontade do comandante do tráfico para ajudar com uns trocados o pai de família em aflição.

Tudo o que João me contou era a mais pura tradução daquilo que autoridades policiais, sociólogos e pesquisadores já repetiram à exaustão: os traficantes dão proteção à comunidade, ocupam as lacunas deixadas por um Estado omisso e acabam conquistando a aprovação dos moradores, seja pela gratidão, seja pelo medo.

O fato de conhecer essa realidade na teoria não reduziu em nada o baque da experiência de conversar com alguém que personifica a face perversa da desigualdade social e da ineficiência do Estado. Especialmente, nesse momento em que o mesmo Estado resolve lembrar que bairros como o Calabar e o Nordeste de Amaralina existem e têm um compêndio de problemas sociais.

Nesse mesmo momento em que governador, prefeito, secretários estaduais e municipais desfilam pelas ruas do Calabar, outros tantos garotos como o que aqui denomino de João, em respeito ao ECA e ao próprio adolescente, estão à mercê das aulas vagas, da violência, do deslizamento de terra e da boa vontade do ‘dono da boca’ para poder comprar um remédio.

Nesse momento, é muito pouco promissor o futuro que se anuncia para o João, aluno da escola municipal que “quase nunca” oferece as cinco aulas previstas para o dia, como disse a própria mãe do garoto.

O jovem João precisará de muita perseverança e sorte para, quem sabe, um dia pensar em ser prefeito ou até mesmo governador. Se o garoto João de hoje não esquecer as agruras que enfrentou na infância, certamente se empenhará para que as escolas públicas venham a merecer esse nome: escola.

* Bárbara Souza é jornalista e editora-chefe do Política Hoje. 


N. do E. Artigo originalmente publicado no Site Politica Hoje em 01/05/2011.

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