O MENINO E A COBRA
Por Achel Tinoco*
No Brasil acontecem coisas que só vendo: um menino estava com o pai tomando banho num rio quando foi atacado por uma cobra grande — uma sucuri. Ela se enrolou em suas pernas e queria porque queria engoli-lo — coisa de cobra! Mas saibam que o menino não se deu por vencido, depois de muita luta e de muitos arranhões, com a ajuda do pai desesperado, ele conseguiu desvencilhar-se por um instante e atingiu a cabeça da cobra com uma faca de caça, matando-a. Tudo certo? Não. Depois do ato considerado heróico por alguns, o pai e o filho levaram a cobra morta de seis metros — já com o exagero acrescido por um pescador — para a cidade, mostrar aos amigos, aos curiosos, quanto fosse possível aumentar o ato de bravura de ambos, quiçá tornar-se lenda. Foi aí que o caldo entornou: imaginem vocês que nessa hora de festa pela sobrevivência do menino, a cobra abatida ao lado, chegou a justiça, solícita e pontual, para prender o “assassino”. Assassino? Exato, esse que matou um animal silvestre. Ora, mas nem o menino nem o pai sabiam lá que diabos era um “animal silvestre”! Pretendiam apenas salvar suas vidas. Mas a justiça é cega, não se esqueçam. E o menino pode ser preso imediatamente por ter cometido um crime inafiançável: matou uma cobra que lhe queria matar. Nem adianta alegar “legítima defesa”, decerto a cobra lhe dera todos os direitos e ele nenhum à cobra.
“Teje preso, então”.
No Brasil é assim: a lei funciona.
Mas para aqueles que matam tão somente seres humanos, aí não tem problema, podemos empurrar com a barriga, como se diz. Na Bahia, por exemplo, um menino de 14 anos foi queimado vivo e até hoje os acusados não foram punidos; outra criança, de 8 anos, foi violentada e morta com mais de quarenta facadas e até hoje os acusados não foram presos; uma jornalista em São Paulo foi atingida com um tiro mortal pelas costas e até hoje o seu namorado está solto; no Rio de Janeiro, todo dia alguém é atingido por balas perdidas e até hoje os agressores continuam atirando; em Brasília, um índio já foi queimado vivo e até hoje os acusados trabalham no serviço público. Desse jeito, o menino que espetou a cobra para não ser engolido por ela, se vacilar e não conseguir um bom advogado, será processado e condenado à prisão perpétua. Não tem prisão perpétua no país, alguém há de nos lembrar. Problema nenhum, a justiça vai encontrar uma brecha — por onde der para passar a cobra — e atirar o menino numa cadeia pública, daquelas de segurança máxima, para servir de lição e que todos aprendam de uma vez: matar um cidadão vá lá, tudo bem, mas matar um animal silvestre dá cadeia, e da braba.
No Brasil é assim: a justiça precisa fazer exame de vista.
*Achel Tinoco é Escritor, nasceu em São Domingos do Capim, no Estado do Pará.
Cursou Letras e Administração de Empresas. Atualmente, reside em Salvador, capital do Estado da Bahia.
Livros publicados: Outra parte de mim, Okavango, Vilarejo dos anjos, Retrato sobre tela, Até parece que foi sonho, As nudezas secretas de Eleonora e Perdendo a metade de mim
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